A DESJUDICIALIZAÇÃO E A ATUAÇÃO DO ADVOGADO MULTIPORTAS PERANTE AS SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS
Paula Brito - 20/08/2025

Introdução
A desjudicialização vem se consolidando no Brasil como um movimento capaz de ampliar o acesso a direitos, desafogar o Poder Judiciário e oferecer respostas mais céleres, seguras e proporcionais às necessidades reais das pessoas. Nesse cenário, as serventias extrajudiciais deixam de ser meros órgãos de registro e passam a ocupar um lugar central na efetivação de direitos, assumindo competências que antes dependiam exclusivamente de decisão judicial.
A Cartilha da Advocacia Multiportas do Conselho Federal da OAB propõe uma atuação profissional ética, estratégica e ampliada. Em vez de reduzir a advocacia ao litígio, essa visão reconhece que o processo judicial é apenas uma das alternativas possíveis. O advogado multiportas atua como gestor de soluções jurídicas, integrando técnica, presença humana e discernimento para escolher, com o cliente, a via mais adequada - judicial ou extrajudicial - a cada caso.
No âmbito das serventias extrajudiciais, essa postura se traduz em condução proativa de procedimentos de retificação e suprimento de registros, alterações de nome e reconhecimento de filiação socioafetiva, entre outros. O profissional organiza a documentação, antecipa exigências, dialoga tecnicamente com o oficial, estrutura requerimentos claros e fundamentados e preserva a autonomia do cliente, garantindo que a decisão seja livre, legítima e bem informada.
Este artigo apresenta, à luz dessa abordagem, três eixos de atuação do advogado multiportas nas serventias extrajudiciais: (i) retificações e suprimentos no Registro Civil das Pessoas Naturais; (ii) alterações de nome; (iii) reconhecimento de filiação socioafetiva. O objetivo é demonstrar, com base nas normas aplicáveis e na prática profissional, como a advocacia multiportas fortalece a segurança jurídica, a eficiência procedimental e a cultura da pacificação social pela via extrajudicial.
No registro civil das pessoas naturais: Das retificações e suprimentos de registro civil no extrajudicial
O movimento de desjudicialização vem promovendo profundas transformações no acesso à Justiça, atribuindo às serventias extrajudiciais um papel cada vez mais relevante na concretização de direitos. No âmbito do Registro Civil das Pessoas Naturais, a legislação permite que determinadas retificações e suprimentos sejam realizados diretamente pelos oficiais de registro, sem necessidade de autorização judicial ou manifestação prévia do Ministério Público, desde que preenchidos os requisitos legais.
O oficial retificará o registro, a averbação ou a anotação, de ofício ou a requerimento do interessado, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, nos casos de: I - erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção; II - erro na transposição de elementos constantes em ordens judiciais, termos ou requerimentos, cuja documentação ficará arquivada no cartório; III - inexatidões na numeração do livro, folha, página, termo, ou data do registro; IV - ausência de indicação do município do nascimento, quando houver descrição precisa do endereço do local do nascimento; V - elevação de distrito a município ou alteração de suas nomenclaturas por força de lei (Art. 110, lei 6.015/73).
Considera-se suprimento o procedimento destinado a corrigir omissões no ato do registro civil, seja para incluir dados obrigatórios ou recomendados não lançados na ocasião da lavratura (suprimento parcial), seja para regularizar atos cuja inscrição no livro competente não se consumou, apesar de terem gerado certidões entregues a terceiros (suprimento total), conforme previsto no art. 205-A, §1º, inc. III, do CNN - Código Nacional de Normas.
Poderá ser objeto de suprimento administrativo qualquer ato lançado nos livros do Registro Civil das Pessoas Naturais, desde que instruído com prova documental suficiente, independentemente de autorização do juiz corregedor (Art. 205-I, CNN). O requerimento deverá ser acompanhado da certidão do ato objeto do suprimento e de outras provas inequívocas (Art. 205-K, CNN). Quando o requerente não dispuser da certidão, deverá justificar essa inviabilidade e apresentar outros documentos que permitam, com segurança, a obtenção dos dados necessários (Art. 205-K, §2º, CNN).
Nesse contexto, a atuação do advogado é essencial para garantir a segurança e a eficácia do procedimento. Longe de se limitar à redação de requerimentos, o advogado - ao adotar uma postura multiportas - atua como gestor estratégico da solução jurídica, conduzindo o cliente de forma técnica, ética e eficiente por todo o trâmite extrajudicial.
Desde a análise inicial da demanda, cabe ao advogado avaliar se o pedido se enquadra nas hipóteses de atuação direta perante a serventia, orientando o cliente sobre a via mais célere e adequada. Sua atuação se destaca também na organização do conjunto documental, assegurando que as provas sejam robustas e capazes de demonstrar, de forma clara, a necessidade da retificação ou suprimento, antecipando eventuais resistências e prevenindo questionamentos futuros.
O requerimento, por sua vez, é elaborado como um instrumento de diálogo técnico com a serventia, facilitando a análise pelo oficial de registro e conferindo agilidade à tramitação. Durante o processo, o advogado atua como elo qualificado entre o cliente e o cartório, ajustando formalidades, sanando exigências e promovendo a convergência de entendimentos de forma colaborativa e respeitosa.
Nos casos de maior complexidade, o advogado multiportas está preparado para articular outras vias de solução, como mediação ou, se necessário, a provocação ao Judiciário, sempre buscando preservar os interesses do cliente com a solução mais eficiente e adequada ao caso concreto.
Essa atuação integrada valoriza a via extrajudicial como espaço legítimo de realização de direitos, ressignificando o papel do advogado como protagonista na construção de soluções jurídicas eficazes, seguras e alinhadas às transformações do nosso tempo.
Como ressaltam Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez, (2019, p. 201), "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público", princípio que pode ser adaptado ao extrajudicial, impondo ao advogado a busca pelo método mais adequado, evitando a judicialização quando possível. Marco Antonio Garcia Lopes Lorencini (2012, p. 72) também observa que a escolha do método mais apropriado depende das características do conflito, exigindo análise técnica e estratégica - exatamente o que se espera de um advogado multiportas.
Alterações de nome nas serventias extrajudiciais: Atuação estratégica na advocacia multiportas
A possibilidade de alteração de prenome e sobrenome diretamente nas serventias extrajudiciais, sem a necessidade de decisão judicial em diversas hipóteses, representa um avanço relevante na desjudicialização e no acesso eficiente aos direitos da personalidade.
A legislação estabelece que a pessoa registrada, após atingir a maioridade civil, pode requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração do prenome, a qual será averbada e publicada eletronicamente (Art. 56, lei 6.015/73). O requerente deve declarar a inexistência de processo judicial em andamento sobre a alteração pretendida ou, caso exista, comprovar seu arquivamento (Art. 515-E, §2º, CNN). Essa alteração imotivada é permitida apenas uma vez, mesmo para pessoas transgênero, e sua reversão depende de sentença judicial (Art. 56, §1º, lei 6.015/73 e Art. 515-D, §2º, CNN). A averbação não é sigilosa e deve conter o prenome anterior, números de documentos pessoais e dados que constarão de todas as certidões, inclusive as de breve relato (Art. 56, §2º, lei 6.015/73 e Art. 515-F, CNN). É possível substituir, acrescer, suprimir ou inverter o prenome (Art. 515-D, §1º, CNN), desde que apresentados os documentos exigidos nos §§ 6º a 9º do art. 518 do CNN.
Quanto ao sobrenome, a alteração pode ser requerida diretamente ao oficial de registro civil, inclusive por mandatário constituído por escritura pública recente, e permite incluir sobrenomes familiares, adicionar ou excluir o do cônjuge (mesmo sem anuência), suprimir originários mantendo vínculo a uma linha de ascendência, ou excluir o do ex-cônjuge após dissolução conjugal. Também é possível alterar sobrenomes por mudança na filiação ou para descendentes e cônjuges nessas situações (Art. 57 da Lei nº 6.015/73; Arts. 515-I e 515-L, CNN).
Algumas hipóteses, como alterações fora das situações previstas ou envolvendo pessoas incapazes, exigem decisão do juiz corregedor (Arts. 515-I, §1º, e 515-J, CNN). Conviventes em união estável registrada podem incluir o sobrenome do companheiro ou alterar conforme as regras do casamento, e retornar ao nome de solteiro mediante averbação da extinção da união (Art. 57, §§2º e 3º-A, lei 6.015/73; Art. 515-L, §3º, CNN). A inclusão do sobrenome de padrasto ou madrasta demanda motivo justificável, consentimento de todos os envolvidos e comprovação da relação de afeto (Art. 57, §8º, lei 6.015/73; Art. 515-M, CNN).
Nesse contexto, o papel do advogado é decisivo. Na perspectiva da advocacia multiportas, ele atua muito além do protocolo documental: é um gestor de soluções jurídicas que integra técnica, estratégia e sensibilidade. A atuação começa com uma escuta qualificada, analisando a viabilidade jurídica e estratégica da alteração, orientando sobre limites legais, repercussões práticas e reunindo a documentação necessária para prevenir exigências e atrasos.
O advogado multiportas organiza o processo de forma clara e robusta, redige requerimentos com fundamentos legais objetivos e constrói um fluxo que facilite a análise pela serventia. Sua postura colaborativa com o oficial de registro permite superar entraves com diálogo técnico e ética. Quando surgem questões mais complexas ou resistências, ele avalia e aciona outras portas - como mediação administrativa ou, se necessário, a via judicial - garantindo segurança jurídica e preservando os interesses do cliente.
Essa abordagem integrada reforça o protagonismo do advogado no movimento de desjudicialização, posicionando-o como agente capaz de transformar a alteração de nome em um procedimento rápido, seguro e alinhado ao novo papel das serventias extrajudiciais como espaços legítimos de realização de direitos.
A atuação do advogado no reconhecimento de filiação socioafetiva: Uma abordagem multiportas
O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos de idade pode ser autorizado diretamente perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, conforme previsto no art. 505 do CNN. Trata-se de um marco importante no processo de desjudicialização das relações familiares, viabilizando que vínculos afetivos estáveis sejam formalizados com celeridade, segurança jurídica e respeito à dignidade humana.
Esse reconhecimento, uma vez efetivado, é irrevogável, só podendo ser desconstituído judicialmente nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação. Os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil, podem requerer tal reconhecimento, desde que observados critérios legais como a diferença mínima de 16 anos entre o pretenso pai ou mãe e o filho a ser reconhecido, e vedações específicas, como o impedimento de reconhecimento entre irmãos ou por ascendentes.
A atuação do advogado, nesse contexto, ganha contornos estratégicos e sensíveis, sobretudo quando alinhada a uma postura multiportas, que valoriza a escuta qualificada, a análise interdisciplinar e a construção de soluções eficazes em diferentes níveis. Desde a análise de viabilidade jurídica até o preparo da documentação, o profissional do Direito orienta o requerente com responsabilidade técnica e sensibilidade para as particularidades da dinâmica familiar envolvida.
Para que o vínculo socioafetivo seja reconhecido, ele precisa ser estável e socialmente exteriorizado. O registrador é responsável por atestar a existência dessa relação, com base em elementos concretos como registros escolares, plano de saúde, documentos de coabitação, vínculos conjugais com o genitor biológico, fotografias e testemunhos. Ainda que a ausência de tais documentos não impeça o registro, é essencial que a impossibilidade seja justificada e que o vínculo seja devidamente apurado. Aqui, a atuação do advogado se revela essencial na estruturação e apresentação das provas, mitigando resistências e facilitando a análise pela serventia.
A prática do advogado que adota uma visão ampliada da advocacia, conectada às transformações do tempo presente, permite inclusive a mediação de dúvidas e o encaminhamento estratégico em casos que envolvam parecer desfavorável do Ministério Público, ou situações de conflito familiar mais delicadas, garantindo o prosseguimento adequado - inclusive, quando necessário, pela via judicial. Além disso, o profissional que atua com base em escuta ativa e visão sistêmica é capaz de articular soluções preventivas, acolhendo não apenas o aspecto legal, mas também as repercussões emocionais e sociais do reconhecimento.
O reconhecimento, de forma unilateral, não permite o registro de mais de dois pais e de duas mães na certidão de nascimento, sendo autorizada a inclusão de apenas um ascendente socioafetivo por linha. A inserção de mais de um dependerá de decisão judicial. Em casos que envolvam pessoa com deficiência, serão observadas as normas da tomada de decisão apoiada, podendo o reconhecimento ocorrer também por disposição de última vontade, via documento público ou particular.
Ao conduzir esse tipo de demanda, o advogado se posiciona como agente facilitador da desjudicialização e da pacificação social, promovendo um ambiente de segurança e acolhimento dentro das serventias extrajudiciais. Mais do que um executor de procedimentos, ele se torna um articulador de caminhos jurídicos e humanos, capaz de equilibrar técnica, empatia e estratégia. Nesse cenário, a advocacia multiportas se revela não apenas como uma possibilidade, mas como uma necessidade diante da complexidade e pluralidade das relações contemporâneas.
Conclusão
A atuação do advogado nas serventias extrajudiciais - seja em retificações e suprimentos, alterações de nome ou reconhecimento de filiação socioafetiva - evidencia que a desjudicialização não é apenas uma mudança procedimental, mas uma transformação de paradigma. A advocacia multiportas, ao integrar técnica, escuta qualificada e visão preventiva, coloca o profissional no centro da construção de soluções seguras, céleres e humanizadas.
Ao assumir esse papel, o advogado fortalece a via extrajudicial como espaço legítimo de realização de direitos, contribui para a pacificação social e reafirma o compromisso ético com a autonomia do cliente e a eficiência do sistema. Como sintetiza a Cartilha do CFOAB (SCHLIECK, p. 9), "não somos uma porta. Somos todas. Porque cada conflito merece o seu caminho, e cada cliente, a segurança de ser conduzido por alguém que enxerga além do processo".
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1 CÓDIGO NACIONAL DE NORMAS DA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), Provimento n. 149, de 30 de agosto de 2023.
2 DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 201.
3 LEI Nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
4 LORENCINI, Marco Antonio Garcia Lopes. Sistema multiportas: opções para tratamento de conflitos de forma adequada. Negociação, mediação e arbitragem-curso básico para programas de graduação em Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 72.
5 SCHLIECK, Eunice. Cartilha da Advocacia Multiportas. Brasília: CFOAB, 2025. Disponível aqui. Acesso em ago. 2025.
Fonte: Migalhas